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Nosso Mestre
Nosso Mestre

Artista homenageado: Mestre Quincas

O ponto alto desta incrível viagem no tempo é a visita à réplica da Nau de Pedro Álvares Cabral em tamanho natural (35 m de comprimento x 8 m de largura x 7 m de altura) tendo o mastro principal 27 m de altura com 1200m² de área velica. Esta belíssima obra de Arte foi executada pelo renomado Mestre Carpinteiro Naval da Região, Mestre Quincas. Abaixo, entrevista feita pela Estudante Suzi, moradora de Porto Seguro, ao Mestre Quincas no início de 2012.

Menino, eu comecei a trabalhar novo, eu ia para escola e quando vinha, onde meu pai tivesse trabalhando eu tinha que ir.

Naquele tempo não tinha aquele negócio de jogar bola, jogar bola não, os antigos achavam que bola era coisa de moleque, com oito anos de idade eu já ajudava meu pai, segurava repuxo no fundo do barco para ele bater a marreta, puxar aquela serra quadrada, portuguesa, desde novinho minha vida é só trabalho.

No tempo da guerra eu era pequeno, garoto e me lembro de algumas coisas que eles usaram lá na Cidade Alta, aquela Igreja de São Benedito, era como um armazém para colocar mercadoria, eles faziam comida e davam para o povo muito pobre, eles iam apanhar a “boia” chamavam de boia. Eu me lembro de algumas coisas, tinha uma casa grande onde hoje é a maçonaria, funcionou prefeitura, funcionou o fórum, a rua era estreitinha e aí demoliram muita coisa, porque hoje já estão preservando as coisas, mais de primeiro não ligavam muito né?

A Cidade era pequena, só tinha a Cidade Histórica e aqui em baixo era assim; Aqui era a rua da Estrada, o Largo 2 de Julho era aqui, os Marco era essa rua aí 7 de setembro, essa praça por ali, Pontinha era a área lá da frente, que hoje chamam de Passarela, o povo falava assim, leva lá nos Marco, que era aqui, leva lá na Pontinha que era lá. A passagem era a rua da Palha, era a área daquele mercado pra lá, depois do prédio da Capitania dos Portos, ali era a rua da Palha, porque antigamente era tudo casinha de palha ali na passagem, tinha o cai n’água, que hoje é a rua da parte de lá e onde hoje tem a rua das balsas era um canalzinho que ia com a maré grande até amendoeira, e era chamado de “o rego da velha Josefa”, assim, o povo já sabia onde era, hoje aterraram e é a rampa onde as balsas atracam. Então ficava como se fosse uma ilha, tinha a parte do cais que não era cais ainda, a praia e aí enchia, ficava aquele pontalzinho, mudou muita coisa aqui em Porto Seguro.

Naquele tempo a gente navegava de canoa no Rio Buranhém até a laje, local que eles chamam de Laje (acima de Vera Cruz), onde começa as cachoeiras, eu de canoa remando rio acima. Naquele tempo tinha os mascates que navegavam pelo rio, eram várias canoas, canoas grandes e saía levando as coisas, mercadorias, cachaça, carne, tudo, compravam cacau, laranja, farinha, milho, caça e trazia de canoa. Tinham vários mascates que faziam isso, depois que entrou a estrada, que o pai de Toniquinho trabalhou, ai acabou aquele movimento do rio. Aqui na boca do rio, o mangue sempre foi fonte de vida e alimento, os pescadores usavam a pescaria de tapagem e camboa, eles cercavam uns 500 metros de rede, daquelas redinhas baixas então cercava e as redes eram enganchadas, com aqueles ganchos de pau que ficavam embaixo, quando a maré subia que o peixe entrava no mangue pra mariscar suspendiam a rede, fazia os enganos e onde não tinha terra seca pra terminar, voltando pra dentro de novo, os peixes iam acompanhando a rede e faziam a volta, beirando a rede novo e no outro era a mesma coisa, ficava naquilo até a maré baixar e o pessoal despescar a rede, o peixe ficava todo preso ali, eram chamadas camboas. No Santo Amaro faziam camboa grande também era uma festa, muito peixe.

Ali na Ilha do Pacuio, esse nome eu não sei de que origem é, lá tinha uma casinha de tábua e madeira da mata que era pra onde levavam os “bexigas”, o pessoal que tinha varíola, naquele tempo era perigoso ai então levavam pra lá e tinham as pessoas certas para cuidar daquele povo, tinha muito coqueiro, mais a maré avançou muito e o povo ainda tirava areia, não tinham consciência e assim a ilha foi diminuindo, mas ainda tá grande, imagina o tamanho que era, era muito grande aquilo ali e hoje chamam de ilha dos aquários, mas o nome é Ilha do Pacuio.

Naquele tempo, tinha muito peixe no recife de fora, não tinha esse negócio de preservar peixe, os pescadores usavam redes e enchiam a canoa de peixe, tinha época que não dava, mas tinha época que dava, depois é que eles proibiram a pescaria lá. E hoje eles proibiram tanta coisa e tão fazendo pior, por que você passa no Recife de Fora e não vê mais peixe e de tanta gente passando e pisando nas língua de vaca que são aquelas pedras vivas, sabe? Se você pisar nelas escorrega, parece uma língua de vaca mesmo, é a pedra crescendo, isso você quase não vê, ouriço ta sumindo, lá dava muito ouriço, tinha que andar calçado e tal, e hoje o lugar que o turista penetra muito, polui, ficou liso de tanto andar.

Eu me lembro da ocasião que o finado Bibi, pegou uma jamanta, uma arraia gigante, que foi puxada com um Jeep ali onde era cooperativa, de primeiro dava muitas delas aqui, elas quase puxavam uma canoa de pescadores, porque elas tinham uns ganchos na frente, qualquer coisa elas fechavam aquilo, ai, os caras da canoa tinham que cortar a corda, naquele tempo às pescarias não eram de barcos eram de canoa, depois que veio esse negócio de barco a motor e aí ninguém mais quer saber de pano.

Recordo-me da minha primeira viajem a Salvador, fui de barco a pano, o barco chamava-se Roseira do finado Bibi, na época fomos assentar o motor dele, o engenheiro mandou a planta da base, aí fomos, eu mais papai, nós ajeitamos as ferramentas aqui e fomos para lá colocar o motor, colocamos lá na ribeira. Saímos daqui véspera de São Pedro, às 7 horas da manhã, a pano e chegamos em Salvador no dia de São Pedro, às 10:00 h da noite, a pano. Pegamos um vento fresco de Cabrália pra lá e a noite fez muito vento e frio, a motor essa viagem leva 36 horas, e nós só gastamos 30, meu pai conhecia o mar. Naquele tempo era só barco mesmo que levava mercadoria, levava o cacau, a piaçava e trazia mercadoria, vinha sabão, querosene tudo… não tinha estrada.

Meu pai conhecido como Mestre Duca, contava que o finado Marcelo Parracho bolia sempre com ele, e dizia que minha avó, que tinha uma casa encostada a que a filha dela morava, tinha o habito de acabar de almoçar e ir devagarzinho passar a tarde na casa da filha e quando era mais tarde ela voltava, naquele tempo só tinham dois carros em Porto Seguro, um carro do Estado DERBA (nome do motorista) e um F 38 de Arquimedes, então um belo dia, a minha avó ia da casa dela para a casa da filha e encontrou o carro do DERBA que vinha, ela encostou na parede, e xingou: – Porto Seguro é uma cidade que não se pode mais andar com o diabo de tanto carro (risos), porque dois carros que tinha, um que tava lá em cima na ponta d areia e o outro que tava passando ela encostou na porta e falou isso, e agora eu fico pensando: – Se minha avó ressuscitasse hoje e visse a quantidade de carros que tem em Porto Seguro, acho que morria novamente, vendo ônibus seria capaz de tomar até a benção.

Porto Seguro era um município muito grande ia até Minas Gerais, só tinha um padre então na época da festa do Divino, ele não podia sair daqui da Sede para festejar em outro canto, então dava outras datas, é como a Festa de São Benedito, que me parece que é no dia 20 de novembro, mas aqui é festejado dia 27 de dezembro, porque na época dos escravos, estes só tinham liberdade do dia 25, de natal até dia 31 de dezembro, eram os dias que eles tinham liberdade de fazer suas festas, então festejavam esses santos, festejavam o Natal, Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, São Benedito, Santa Efigênia que é a Santa Preta também, Santo Inácio de Loyola, esses santos estão todos na Igreja de São Benedito na Cidade Alta, então continua a tradição no Arraial D’ Ajuda, celebram oito dias depois da páscoa, festejam São Benedito dos Pescadores, porque eram os pescadores que faziam a festa lá.

E falando em festas da igreja, tivemos aqui um padre diferente, chamava-se Padre Emiliano, ele era negro, muito inteligente e simpático, dizem que ele tinha muitas mulheres e também muitos filhos, contam que o Manduquinha, tinha um caso com uma das mulheres do padre, o padre soube e tanto fez que casou Manduquinha com ela, ai ele dizia assim: – De primeiro diziam que Manduquinha estava traindo o Padre e hoje já dizem o contrário o Padre é que estava traindo (risos), o Padre era perigoso, dizem que em uma ocasião ele estava em Alcobaça e o Bispo foi lá e ficou sabendo até da existência de filhos, e lá o Bispo passeando pelas ruas com o Padre Emiliano, chegaram uns meninos dizendo: – A benção meu pai, a benção, ao que o Padre respondia: – Tá vendo Sr. Bispo como eu sou querido nessa terra, até as crianças me chamam de pai. Ele era um padre trabalhador, o município de Porto Seguro abrangia Guaratinga, Buranhém e São João do Sul, ia até Minas, tudo era distrito de Porto Seguro e só tinha ele de padre, ele fazia essa freguesia todinha montado em uma mula, em companhia do ajudante, desde os anos 40 a quase os anos 60.

No início dos anos 50, Porto Seguro teve um Prefeito chamado Dr. Adelar Maria de Andrade, esses prédios ai (Colégio Cabral e o Municipal) onde está essa área foi deixada por ele. A primeira escola foi feita por ele, ele deixou essa quadra toda só para fazer colégio. O Cabral foi ele que construiu tinha umas 5 salas de aula, depois teve o Manoel Carneiro que construiu a biblioteca, e outros prefeitos que vieram foram melhorando e ampliando, então essa quadra no centro da cidade ficou só para educação.

No tempo que Augusto Borges era prefeito interino, ele foi até a Capital Salvador e conseguiu um motor gerador Cartepillar com um deputado que eu não sei bem o nome, aí quando esse motor chegou aqui foi uma festa, aí colocaram ali aonde é a garagem da Prefeitura, ali tinha uma casa, assentaram o motor ali, e depois veio outro grupo gerador e também colocaram lá, ai passou muito tempo e 1973 chegou a energia de Paulo Afonso.

E por falar em motor, quando o Cartepillar deu problema, chamaram Álvaro Careca para consertar, ele foi desmontar o motor, e depois que desmontou e montou de novo, sobrou uma lata cheia de parafusos. (Mestre Quincas solta uma gargalhada). Era uma pessoa simpática.

E Mario Seixas que era o Telegrafista, uma vez chegou um telegrama endereçado para o Sr. Mário Seixas, e ele saiu perguntando quem era Mario Seixas… era ele mesmo. (Novamente gargalha relembrando histórias da época.)

Aqui tem muita gente que eu admiro, o velho Gilberto que chamam de Bertinho, é uma pessoa que sempre admirei, é um profissional muito bom. Raimundo Vinhas também é uma pessoa muito boa, é um tio torto de Jânio Natal. Me lembro de Henriquinho pai de Imbé, ele se parecia muito com o filho dele Eduardo, era cacauicultor e muito trabalhador. Na família Ramos sempre tive muitos amigos. Aqui do lado tem um sujeito esquisito, mas com um grande coração, todo mundo conhece Rafael do bar, a brabeza dele é pura bondade, é um bom amigo.

A vida da gente é um caso, o dia-a-dia, é uma labuta, quando comecei a trabalhar aqui, não tinha energia, o trabalho era todo manual, era machado e enxó, furadeira? Ninguém conhecia, nem o que era uma serra circular, trabalhamos num barco aqui com 28 metros de comprimento, que foi feito todo no machado e enxó, tudo a mão, trabalhamos três anos nesse barco, que chamava Elizabete e acabou incendiado no porto de Salvador carregado de inflamáveis, na hora da saída ele incendiou e explodiu, levava cacau, piaçava e trazia mercadoria, pois não tinha estrada naquela época, até a gasolina vinha no tambor de lata. Era grande a dificuldade em construir embarcações, e ainda continua, tanto embarcação grande quanto pequena, a grande é mais trabalhosa porque as peças são maiores e mais pesadas. Na época que a madeira era daqui mesmo, a gente usava muito a oiticica, oiti, jaqueira e hoje meus filhos já tão trabalhando com madeira que vem lá do Pará, que chamam de garapa e pequi.

Meu último trabalho como mestre foi a réplica da caravela (cabralina) que encontra-se para visitação no Memorial da Epopeia do Descobrimento. Hoje, são meus filhos que tocam o estaleiro. Eu trabalhei muito, tanto na carpintaria naval, quanto na civil, trabalhei muito nessas igrejas, aquela Igreja (Nossa Senhora do Brasil) fiz quase tudo, telhado, bancadas, o forro, o estilo do forro foi eu quem deu a ideia, fiz uns três bancos para o padre ver como deveria ser, ai ele aprovou, mandei serrar a madeira, toda serrado a braço, tudo feito à mão, naquele tempo não tinha máquina, não tinha nada, a mesa do altar, as portas, janela, foi tudo eu que fiz, foi uma trabalheira braba. O ano não me recordo, mas foi no começo dos anos 60. Essas igrejas todas já fiz reforma, a de Trancoso já reformei duas vezes, a primeira vez eu estava com 23 anos, depois de 20 anos a reformei de novo. A igreja da Pena eu trabalhei no telhado e no altar, a da Misericórdia que hoje é museu sacro trabalhei também, a de São Benedito também reformei. Sempre gostei de música, não tive muito tempo de namorar, tocava muito em festa, era musico, toquei tanto na Filarmônica como tocava nos bailes aqui. Festa da Pena, Festa D’ Ajuda, naquele clube 22 de Abril quando inaugurou, fui eu que inaugurei, tocava muito lá nos carnavais, tempo bom.

Hoje a vida tá mais fácil, o governo tá mais presente, a Capitania dos Portos é muito importante, realiza cursos de pesca para os pescadores, tira documentos, que de primeiro tinha que ir para Belmonte para tirar documentos dos barcos, faz vistoria dos barcos, das escunas, fiscaliza a costa, presta socorro nos caso de barcos quando tem alguma avaria lá fora, já teve caso de corveta da Marinha que deu socorro a barco de pescador.

Pra mim, a saúde, e a educação, onde muitos reclamam e não se devia reclamar tanto, hoje tem o SUS, antigamente não dava pra imaginar isso, a verdade é que o povo brasileiro é um povo muito doente, todo canto tá cheio, você vai num hospital particular, tá cheio, um laboratório, tá cheio, é um negócio muito sério, não sei se é a alimentação do brasileiro? Pra você ver o diabetes antigamente podia contar nos dedos quem tinha essa doença, hoje até criança tem, né? Então alguma cosia aconteceu aí, porque tudo hoje possui agrotóxico é tanta mistura e de primeiro não, tudo era natural na alimentação. Eu fiquei diabético e fumava muito, sentia muita quentura nos pés, ia a médicos, certo dia, Dr. Álvaro mandou eu ir a um médico especialista lá de Ilhéus, eu fiz uma consulta com ele, teste para a circulação, e ele me disse: – Mestre Quincas ou você para de fumar ou vai perder a perna. Parei de fumar na hora mesmo, nunca mais fumei, após cinco anos perdi a perna, e nos últimos anos, me submeti a cirurgias, fiz três pontes de safena.

Atualmente, a gente vê tanta coisa que acha que está errado e não está, por que às vezes temos um ponto de vista diferente do outro, e quando se está na administração você tá fazendo aquilo que acha que está certo, e que às vezes não agrada, é assim no trabalho particular, na minha arte, na sua arte e na administração pública.

O Desenvolvimento de Porto Seguro, por um lado eu acho muito bom, era uma cidade que não tinha trabalho, não tinha emprego, a pessoa tinha que sair como muitos saíram para trabalhar fora, e hoje já tem muito emprego, tem até muita gente de fora que trabalha, o ruim, e isso não é só aqui, é a violência que está em todo canto e todo lugar. Antigamente você podia colocar uma esteira na porta da casa e dormir, até passava pessoas e falavam: – Tá tarde, entra para casa! Não tinha bandido, assaltante nem moleques desocupados, era uma tranquilidade muito boa, e que hoje nós não temos mais, temos que ficar dentro de casa com grades nas janelas e portas. Apesar de tudo veio o turismo que é muito bom, trouxe trabalho e sobrevivência para muita gente, diretamente e indiretamente. A pessoa que disser: – “O turismo pra mim não vale nada.” Está enganado, quem vive aqui, vive dele e às vezes não sabe.”